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O coração é um caçador solitário, de Carson McCullers

Primeiro romance de Carson McCullers e, considerado por muitos, sua obra-prima

12/08/2015 13:29

Primeiro romance de Carson McCullers e, considerado por muitos, sua obra-prima. Escrito quando ela tinha apenas 22 anos, foi aclamado pela crítica no ano de sua publicação, em 1940.

A narrativa se passa na década de 1930 – quando os Estados Unidos ainda sentia profundamente as consequências da quebra da bolsa de 1929.  A pequena cidade do sul, onde é ambientado o romance, não é identificada, porém, sabe-se apenas que pertence ao estado da Geórgia.

Na cidade há dois mudos: Jonh Singer, um relojoeiro, e seu amigo inseparável, o grego Antonapoulos – que termina internado devido a problemas de saúde. Singer passa a viver só e aluga um quarto na casa dos Kelly. Lá ele irá conhecer a menina Mick, uma criança talentosa e sensível; há também Jake Blount, um forasteiro que chega a cidade, alcoólatra e com ideais comunistas; o dono do bar mais frequentado, Biff Brannon; e o médico negro, Benedict Copeland.

Cada um desses personagens carrega um tipo de solidão – causada pelo idealismo, pela cor da pele ou pelo gênero. E é esse o fator determinante para que todos se tornem amigos do mudo, Sr. Singer, que, embora não escute, tem a habilidade de ler os lábios. Todos terminam encontrando na figura do mudo uma espécie de redenção e de liberdade.

Para a autora, o livro trata da revolta humana contra seu próprio isolamento interior, e sua compulsão em expressar-se tão completamente quanto possível. Assim, Singer será sobrecarregado com as confissões e as expectativas alheias. A capacidade de ouvir do Sr. Singer, pode ser ligada à ideia de deus, a quem recorremos através da oração e prece – quem acredita-se que tenha capacidade de escutar. Todos passam a tê-lo em alta conta e acreditam que há algo de especial no mudo, quase um deus, ou muito similar a uma ideia divina construída por cada um dos personagens. Como justifica a própria Carson no mesmo ensaio citado anteriormente: “Há uma profunda necessidade no homem de expressar-se por meio de algum princípio unificador ou Deus. Um Deus pessoal, criado pelo homem, é um reflexo dele mesmo e, na verdade, esse Deus é frequentemente inferior a seu criador”. O mudo seria, portanto, uma pessoa construída para exercer na trama o papel de um deus inventado para sanar ou aliviar as angústias dos outros. A sua incapacidade de física de comunicar-se com os ouvintes, seus confidentes, fez com que cada um deles criasse uma projeção particular de quem ele deveria ser. Condizentes assim, com as diferentes expectativas de cada um deles.

Carson, o leitor e o crescimento humano

“O Coração é um Caçador Solitário” já diz, no título, muito sobre si mesmo: o drama universal da solidão e a necessidade de ser compreendido. E reforça durante todo o percurso do romance a importância da alteridade como chave para o autoconhecimento.

Sr. Singer é, durante quase a totalidade do enredo, uma personagem neutra, sobre a qual não sabemos muito, pouco é dito sobre seus sentimentos e sobre sua própria solidão. Ele está preso numa teia de silêncio, quando se trata de si próprio, e preso numa teia de palavras e de discursos dos outros. Sempre disponível para ouvi-los, sem sequer ousar julgá-los. O mudo é a figura que revela para nós, leitores, muito sobre todos os outros personagens: uma ironia.

Todos vivem conflitos com a sociedade, alguns batem de frente com ela e pagam alto por isso. E sentem a angústia de viver numa realidade de desigualdades sociais e raciais. Através da grandeza de tais figuras, o leitor acrescenta ao seu olhar a importância do olhar do outro e de como isso pode tornar a compreensão do mundo mais completa. “Cada homem deve se expressar do seu próprio jeito – mas isso é geralmente negado a ele por uma sociedade esbanjadora e de visão limitada”, complementa autora. Ela defende ainda, em seu ensaio, que percebe seus cinco personagens como heróis, são pessoas que tentam continuamente superar a si mesmas e que se doam sem esperar recompensa alguma.

Em Teoria da Literatura, Roberto Acízelo de Souza diz que além das propriedades consideradas artísticas/e ou ficcionais, as obras literárias teriam também a capacidade de gerar especiais ressonâncias interiores no espectador/leitor. Deixando, assim, de ser apenas objeto de estudo de caráter normativo para se tornar também um registro de impressões de leitura – já que a maioria dos leitores está destituída de arcabouços teóricos.

Não deixando, porém, de ser crítico, o autor afirma que a questão é que a obra literária é mergulho na pele de outro alguém ou de si mesmo, trazendo à tona outra perspectiva de mundo e si próprio. Carson concede ao leitor a oportunidade de ser negro no sul dos EUA na década de 1930, de ser uma garota com expectativas que extrapolam demasiadamente suas possibilidades, de ser um idealista que deseja um mundo mais igualitário, mas que não consegue aplacar suas próprias emoções e seus desequilíbrios, e como é passar a vida atrás de balcão apenas observando a vida dos outros. E, mais ainda, fala-nos sobre a dificuldade de compreender a imensidão que o outro carrega. Vamos com o mudo, ouvindo os relatos de outrem e nos reconhecendo neles. Como se todos fôssemos, afinal de contas, um só.

Carson McCullers entre o outro e a solidão

Carson McCullers nasceu em fevereiro de 1917, no estado da Geórgia, sul dos Estados Unidos, o que exerceu grande influência na sua literatura, tanto quanto qualquer realidade opressora, pobre e atrasada pode marcar um espírito sensível e artístico. Alguns críticos da época chegaram a rotular o grupo de escritores do sul como “Escola Gótica” – por exporem o lado grotesco e inconveniente da condição humana. Em um ensaio sobre essa questão, Carson defende que o rótulo não corresponde ao real trabalho desenvolvido pelo grupo e que a literatura do sul teria mais em comum com os realistas russos. “O sul e a velha Rússia têm muito em comum sociologicamente falando. O sul sempre foi uma zona afastada do resto dos Estados Unidos, tendo seus próprios interesses e personalidade distinta. Economicamente e em outras formas, foi usado como um tipo de colônia para o resto da nação. A pobreza é diferente de qualquer coisa conhecida em outras partes do país. Há a divisão de classes na estrutura social, similar àquela da velha Rússia.”, defende a autora no ensaio “Os realistas russos e a literatura sulista”, publicado no livro Coração Hipotecado, que reúne textos raros seus.


Por: Ananda Sampaio

Revisão: Ceiça Souza

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