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Morangos Mofados - Caio Fernando Abreu

Obra retrata a construção da identidade e gênero após as revoluções culturais e ditadura no Brasil dos anos 1960 e 1970

25/05/2015 13:49

Caio Fernando Abreu, brasileiro nascido em Santiago, Rio Grande do Sul, foi um dos maiores expoentes da literatura brasileira de todos os tempos, cuja obra foi escrita entre as décadas de 1960 e 1990. Faleceu em 1996, vítima de complicações ocasionadas pelo vírus HIV.

A obra de Caio Fernando tem cunho fortemente pessoal, sendo toda ela permeada pela temática dos relacionamentos, do sexo, do homoerotismo e da solidão, esse último tema, do qual fala com vasta recorrência, é uma de suas marcas mais valiosas, tornando-o excelente retratista da fragmentação da identidade e do sujeito isolado no Brasil pós-ditadura.

Em Morangos Mofados (1982), saltam aos olhos os indivíduos solitários, desprovidos de esperanças, sem o brilho das utopias típicas nas décadas de 1960 e 1970.

A obra dispõe de 18 contos divididos em duas partes, O mofo e Os morangos, dos quais este ensaio se limitará a três: Os sobreviventes, Terça-feira gorda e Aqueles dois.

Os sobreviventes, segundo conto livro, se desenvolve em torno do diálogo de dois amigos, um homem e uma mulher. Ambos refletem suas angústias, seus sonhos e suas frustrações. Fica implícito a grande desilusão dos dois, que sofrem com os melindres do desastre que foi a ditadura que havia no Brasil, e que os obrigava a calar seus sentimentos, suas utopias e sua homossexualidade. Em meio a uma conversa sobre a sua amizade, o diálogo desemboca para o retrato de uma geração que viveu a luta contra a ditadura e o florescer da intelectualidade esquerdista e, naquele momento, seguiam cotidianamente sem passionalidade alguma para “aquele maldito emprego de oito horas diárias” (p. 25) e tinham de conviver com “aquele gosto podre de fracasso” (p. 29).

Terça-feira gorda é um conto ambientado num baile de carnaval, onde o narrador vivencia um encontro erótico com outro homem. A narrativa, carregada de deleite e erotismo, nos apresenta dois homens que se reconhecem livres para o prazer que o envolvimento de ambos ocasionará, “ele começou a sambar bonito e veio vindo para mim. Me olhava nos olhos quase sorrindo, uma ruga entre as sobrancelhas pedindo confirmação. Confirmei, quase sorrindo também” (p.55). Se os dois se envolvem livremente, sem preconceito e reconhecendo mutuamente sua orientação sexual, por outro lado as pessoas ao redor olhavam e condenavam. Saindo da festa e seguindo para a praia, são surpreendidos por um grupo de pessoas que os agride fisicamente, “a queda lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se no chão em mil pedaços sangrentos” (p.58). A violência sofrida denota o retrato irônico de um povo que se esbalda no carnaval usando máscaras, mas é incapaz de romper seus padrões preconceituosos.

Em Aqueles dois, conhecemos a história do envolvimento de Saul e Raul, que trabalhavam lado a lado num escritório ao longo de nove horas diárias. Não sabiam ao certo quando começou, mas entendiam que “num deserto de almas também desertas uma alma especial conhece de imediato a outra” (p. 132). Entre doses de cafés e diálogos sobre filmes de que os dois gostavam, o afeto cresce até tornarem-se amigos, falarem sobre suas vidas como confidentes. Embalados ao som de Carlos Gardel, almoçavam juntos, conversavam, choravam o luto pela perda das pessoas que amavam se abraçando num acordo tácito de que tinham um ao outro. Enquanto isso, no escritório, todos percebiam a aproximação deles, até que foram demitidos, vítimas do preconceito social. Saíram do escritório juntos e tomaram um táxi. Um pouco distante daquela sensação de impunidade vivida pelo narrador de Terça-feira gorda, Raul e Saul sentem-se vingados simbolicamente daquelas pessoas do escritório, “Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.” (p. 141).

Em todas essas personagens é recorrente a imagem do novo sujeito. São novas as demandas do indivíduo que combateu e construiu a resistência frente à ditadura e depois vê dentro da solidão o vazio das utopias; do casal de gays que ainda não possui voz para garantir a tolerância e morre pela barbárie do preconceito; dos amigos que sofrem a violência simbólica e são rechaçados com a perda do emprego por terem construído uma amizade afetuosa numa sociedade que não a permite. Caio Fernando Abreu lança luz sobre a figura do sujeito pós-moderno, formado pela existência autônoma, com histórias particulares, identificações fragmentadas e grupos de pertencimento mais singulares que universais – ressaltados na consciência do abandono e abordagem crua de gênero e identidade por um viés que ainda não era legitimado socialmente.


Por: Luciana Lis

Revisão: Ceiça Souza


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