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Crônica de um Coração Silencioso

Por Mara Vanessa Torres

01/06/2015 09:05

Comecei a ter contato com o universo literário quando ainda era um feto sem nome e sexo conhecido, vivendo feliz em um paraíso chamado útero materno. Dona Fátima e Seu Francisco, meus pais, tinham o hábito de ler os contos de fadas de Hans Christian Andersen, as fábulas de Esopo, e narrativas envolvendo lendas indígenas brasileiras quando eu ainda estava em formação. Depois do meu nascimento, as leituras continuaram durante todas as manhãs e finais de tarde. O mesmo aconteceu com minha irmã, um ano e sete meses mais nova. Segundo consta nos autos familiares, meu interesse voluntário por livros teve início aos cinco anos de idade quando, insatisfeita com as rápidas (?) horas de leitura do meu dia, vivia perseguindo meus pais com um livrinho ou gibi nas mãos, pedindo que continuassem lendo as histórias para mim. Lembro de, aos sete anos, não conseguir tirar da cabeça o conto “Os Cisnes Selvagens”, do já citado Andersen, e passar dias imaginando uma continuação para a história da princesa Elisa e de seus onze irmãos que se transformavam em cisnes.

Ainda na infância, esbocei meu primeiro conto, devidamente guardado e datilografado pela minha mãe. Era um apólogo sobre estrelas e cometas. O céu sempre me fascinou, assim como chocolates e balões. Então, os dias se metamorfosearam em meses e os meses em anos. Conheci novos autores – Marcos Rey, Ruth Rocha, Júlio Emílio Braz ,abandonei clássicos, a exemplo de Monteiro Lobato, cujas obras nunca me cativaram, e fui criando mundos nas redações escolares. Em todo esse tempo – e durante muitos outros tempos -, nunca soube exatamente o motivo pelo qual escrevo e leio. Duvido que exista algum, na verdade. Até hoje, vinte e sete anos depois que esperneei na maternidade, a escrita tem sido como a entrada e saída de ar nos pulmões. Não quero acabar com meus demônios, nem afastar fantasmas ou expressar minhas alegrias. A ação toda, quase involuntária, tem a forma de um pássaro trancafiado e nervoso que, em gestos incontroláveis, bate constantemente as asas e rasga o silêncio pedindo para ser libertado. Nada mais ou menos do que isso.

Na adolescência, topei de frente com escritores que me acompanham até hoje – e, ao que parece, para sempre. Gente como Jane Austen, Machado de Assis, José de Alencar, Álvares de Azevedo, Lord Byron, Emily Dickinson, Assis Brasil (o piauiense), Mário Faustino e Edgar Allan Poe. Nessa época, eu costumava escrever sobre amores perdidos, platonismos e saudades. Milhares de folhas soltas, papéis de carta, finais de caderno, agendas telefônicas e cartas de amigas e amigos podem trazer à tona esse período. As caixas de sapato e presente guardadas em casa também respiram a poeira desses textos.

O ano em que prestei vestibular – 2005 – levou muita coisa embora. Continuei escrevendo em fluxo de consciência, mas sem deter qualquer pensamento consciente. Para o turbilhão de ideias e a vontade esfomeada de ler sem compromisso foi devastador. Depois, no curso de Direito, as leituras além-muro-universitário simplesmente foram esquecidas. Nesse momento da minha vida – que considero como Idade das Trevas -, estanquei. Foram dois anos sem conseguir encarar meus livros de ficção e poesia. Senti como se perdesse um grande amor; lacuna que sangra e fere. Para minha sorte, o espírito dominou o corpo e eu consegui fugir dos lapsos de mecanização mental para escrever. As palavras foram libertadas seguindo o curso do oceano e ouvindo o som do invisível. Agradeço a esse momento da minha vida por ter me feito beber litros de John Fante, Franz Kafka, Joseph Conrad, Charles Bukowski, Jack Kerouac, Sylvia Plath e outros tantos que têm o poder de me abduzir e, ao mesmo tempo, devolver ao mundo terreno – não sem danos, claro, porque certos caminhos não têm volta. A libertação total só veio com a entrada no curso de Jornalismo, minha salvação, paixão cega e “bandida” e redenção. Mas isso é história para outras páginas.

Depois de destravar as algemas, encontrei papéis randômicos com meus escritos por todos os lados, mas eu não me achava em condições para partilhar nada com ninguém. Vivia submersa na ideia de que escritores são gênios, constelações sagradas que, depois de muito esforço de vida e alma, conseguem colocar para fora o que trazem palpitando nas veias. Sacralizei livros e seus criadores. A palavra “escritora” não poderia ser sequer sussurrada em meus pensamentos mais secretos; não, eu não me reconhecia dessa forma. Esse andar da carruagem foi me mortificando cada vez mais; tinha vontade de partilhar, jogar para o alto tudo o que tinha colocado no mundo durante esses anos. Pulei de imaginação à imaginação, saltei os galhos das frondosas árvores de culpa que bloqueavam a minha vontade e intensidade de escrever para publicar. Como faria isso? Mandaria para uma editora? E se não aceitassem? Não, claro que não. Quando você cria deuses, acaba matando um pouco de si mesmo por achar que não tem o direito sagrado de encarar os olhos do seu faraó imaginário.

Com a paciência de um coração travado, atravessei meus dias escrevendo sem nenhuma pretensão. Nem mesmo pessoas próximas tinham contato com o que eu pincelava. A fixação pelo ideal que construímos é nossa maior loucura. A magia da transformação acontece quando os sentimentos transbordam. E foi assim que, cansada dos espectros e ídolos que criei, decidi partilhar meu primeiro conto em formato e-book. “O Som do Abismo em Preto e Branco” devastou todas as gaiolas que me aprisionavam. Acima disso, ele me permitiu entrar no túnel da escrita, das ideias e das sensações interiores para descobrir um novo olhar. A partir desse instante, mente e percepção começaram a trabalhar em conjunto e imergir em uma das minhas maiores paixões: a Ficção Real.

Optei pelo formato online porque tinha pressa, ânsia e vontade de trabalhar sem muitas dependências e amarras. Depois de quase duas décadas usando coleira mental, eu não conseguia mais conter o desejo de dividir com todas as pessoas, conhecidas ou não, tudo o que os meus olhos agarram e a mente elabora. Foi assim que nasceram “Átimo”, “Um Sopro” e “Invencionices de Outro Mundo” (este último com lançamento previsto para o próximo mês - junho). Depois de “pular o fogo”, terminei de organizar e editar meu primeiro livro completo de contos, “Os Sonhos de Jurema e Outras Historietas Sem Tempo”, com previsão para ser lançado ainda este ano. E, finalmente, consegui mergulhar nas águas profundas de “Zênite”, meu primeiro romance, ainda em processo de revisão e edição, fruto de um longo e doloroso amor com o mundo em que vivo – ou acho que vivo, nunca saberei.

A grande libertação, no entanto, é única e indiscutivelmente essa: me reconhecer como escritora; assinar como escritora e mencionar, de forma consciente, que escrever é um ato humano. Precisamos ser extremamente humanos para ver e aceitar o que temos por dentro. A galáxia das palavras e o universo das ideias são possibilidades de travessias em nossa eterna tentativa de encontrar o que muitas vezes silenciamos e negamos: o benefício da dúvida, a coragem da tentativa e a determinação de acreditar no que se sente.

Sobre a autora

Mara Vanessa Torres é jornalista, escritora, crítica cultural, editora-executiva no portal interrogAção, redatora no blog Dose Literária e colunista na Revista Biblioo. É autora dos livros “O Som do Abismo em Preto e Branco”, “Átimo”, "Um Sopro", "Invencionices de Outro Mundo" e "Os Sonhos de Jurema e Outras Historietas Sem Tempo". Apaixonada por literatura, história, cinema, música e ficções-reais. Aprendeu que existem verdades que mentem.

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