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As meninas, de Lygia Fagundes Telles

Obra emblemática da literatura brasileira aborda diversos tabus sexualidade e a condição da mulher

05/10/2015 15:22

Esta pode ser considerada uma das obras mais emblemáticas da Literatura Brasileira, possivelmente por refletir um período dolorido da história do nosso país, além de tocar em muitos pontos considerados tabus, tais como: drogas, sexualidade, política, aborto e a condição da mulher.

Início da década de 1970 e a América do Sul quase toda vive as agruras de regimes totalitários, e muitos cidadãos têm sua liberdade cerceada e a vigilância do Estado se posiciona de maneira cada vez mais incisiva. Mesmo não tocando diretamente neste tema, percebemos a ansiedade e o medo nas falas apressadas das protagonistas Ana Clara, Lorena e Lia. Numa narrativa dinâmica e atabalhoada, em que as vozes das protagonistas se confundem também com a voz do narrador onisciente, em terceira pessoa, como se estivéssemos ao telefone ouvindo uma conversa de linhas cruzadas.

As três universitárias moram em um pensionato de freiras, em São Paulo. As suas vidas não têm muito em comum, o que enriquece o painel narrativo. Ana Clara é estudante de Psicologia que teve a infância repleta de abandono e de abuso; Lorena estuda Direito e é de família rica e tradicional, mas também encobre muitos acontecimentos dolorosos, como a morte prematura do irmão; Lia é filha de um nazista redimido e de uma baiana.

No entanto, temas recorrentes permeiam a vida das três, como o amor, a solidão e o abandono. Lia se “esconde” na luta política, materialista, resguarda muitas de suas emoções para não parecer frágil; Lorena é detalhista, vive no seu mundo particular, nos seus devaneios amorosos e filosóficos; Ana, apelidada de Ana Turva, foi a personagem que mais me atormentou, tanto pela sua condição de não ter sequer um familiar e assim estar só no mundo, como pelo seu vício em drogas pesadas.

Sem muita preocupação em localizar sua narrativa no tempo, Lygia vai contornando esse detalhe aparentemente desnecessário, entrincheirando-se no mundo interior de cada uma delas. Submergimos no passado de cada uma das moças por meio de seus fluxos de pensamentos, sinceros e sensíveis. Nos mundos que orbitam em torno das meninas, batemos de frente com uma mulher que não aceita a velhice, com jovens que desistem de todas as aspirações burguesas familiares para se permitirem mais liberdade, com as pessoas que tentam salvar umas as outras, sendo que nem mesmo têm sua salvação garantida.

Ana Clara, com sua beleza estonteante; Lia, ou Lião, com sua coragem e seu desejo de desbravar o mundo; e Lorena, moça que muitos consideram alienada, mas que, ao meu ver ,é alguém muito sensível e inteligente para bater de frente com o mundo. Afinal, nem todos ou quase ninguém está preparado para brigar com o mundo ou para lhe dar as mãos e isso se acentua por conta do momento político social que o Brasil atravessava à época. O isolamento interior também é forçado pelo medo da vida social. Seja pelo receio do sofrimento gerado por um relacionamento amoroso, assim se prefere idealizá-lo a vivê-lo, como no caso de Lorena, ou, ainda, pelo medo de ser preso, torturado, como muitos que são citados brevemente no texto. Lygia nos fala do exterior por meio do que se passa dentro do coração de cada uma delas. Elas são o mundo todo.

A identificação é quase que imediata, ao longo da leitura percebemos que cada uma delas tem uma mensagem ou apenas um recado a dar. Seja sobre a necessidade de se ter uma ideologia pela qual lutar, seja pela importância da compaixão, ou sobre a beleza de ser sensível às necessidades alheias. As meninas são a riqueza do livro! O final do livro é tão agridoce que tenho dificuldade de encontrar um adjetivo que possa estar à altura do meu sentimento quando cheguei às últimas linhas. Um desfecho repleto de desesperança e de candura.


Por: Ananda Sampaio

Revisão: Ceiça Souza

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