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Abril Despedaçado

Uma história simples e sem floreios sobre honra, vingança e a própria existência humana

02/07/2015 13:37

Ismail Kadaré nasceu em 1936, em Girokastra, no sul da Albânia. Em outubro de 1990, exilou-se na França depois de sofrer ameaças do regime comunista albanês. Em 1978, escreveu o romance “Abril Despedaçado”, livro vencedor do prêmio Man Booker International, em 2005. Com narrativa profunda, Kadaré conta a história de Gjorg Berisha, um jovem envolvido em uma disputa secular entre famílias, tendo como base o Kanun, código de leis consuetudinárias que regula toda a vida dos montanheses no norte da Albânia. Gjorg tem uma dívida de sangue para resgatar a honra de sua família. Há 70 anos, os Berisha e os Kryeqyq estão em vendeta e Gjorg é escolhido por seu pai para vingar a morte de seu irmão, Mëhill, ocorrida um ano e meio antes. Obedecendo a todos os preceitos do Kanun, Gjorg executa a vingança e cumpre seu dever de cobrar o sangue devido aos Berisha – com um tiro de fuzil toma o sangue de Zef Kryeqyq. A partir dessa data, Gjorg torna-se um gjaks (assassino) e terá um período de bessa (30 dias sem poder ser morto) até a família de Zef ter direito de cobrar seu sangue.

Era dia 17 de março e Gjorg tinha agora sua vida dividida em duas: os 26 anos já vividos e as quatro semanas que lhe restam. De abril, Gjorg viria apenas a sua primeira metade. “Abril desde já se revestia de uma dor azulada... Ah, sim, abril sempre lhe causara essa impressão, de um mês um tanto incompleto. Abril dos amores como diziam as canções. O seu abril despedaçado.” Após a morte de Zef, Gjorg precisa pagar a dívida do sangue e começa uma viagem até a kullë (casa) de Orosh – local determinado pelo Kanun para receber o tributo do sangue –, e na estrada cruza com o casal Bessian e Diana que decidiram passar a lua de mel nas montanhas. Bessian é um escritor apaixonado pelas estórias do Kanun e resolve levar sua esposa para conhecer os mistérios desse implacável código. As vidas de Gjorg, Bessian e Diana são profundamente modificadas pelo Kanun: “o Kanun era mais poderoso do que parecia”; “o Kanun é totalizante”.

A viagem de Bessian e sua esposa aos montes Malditos do norte da Albânia provoca em Diana uma verdadeira epifania. Sua vida em Tirana (capital da Albânia) jamais poderia se comparar à realidade vivida pelos montanheses daquelas aldeias de casas claustrofóbicas, e esse choque transforma irremediavelmente sua percepção de mundo. Depois de seu encontro com Gjorg, o montanhês marcado para morrer, questões como a fluidez da vida ganham novo significado: “Tudo passa.” Bessian, grande estudioso dos ditames do Kanun, agora percebe que seus escritos jamais se aproximaram do que efetivamente representa o Kanun e a sua amplitude: “o Kanun estendia-se por toda a parte, deslizava pelas terras, pelas bordas dos campos lavrados, penetrava nos alicerces das casas, nos túmulos, nas igrejas, ruas, feiras, festas de noivado, erguia-se até os cumes alpinos, talvez ainda mais alto até o próprio céu, de onde caía em forma de chuva para encher os cursos de água que eram o motivo de um terço dos assassinatos”.

“Abril Despedaçado” mostra como um sistema moral pode dominar a cultura de um povo, condenar os homens a agirem apenas para obedecer cegamente a ordens e regulamentos iniciados não se sabe onde, nem quando e nem por quê; a seguirem um propósito de vida pré-ordenado, predestinado. Entretanto, a regra moral é tão grandiosa que, ao invés de conduzir a vida a um marasmo existencial, a vendeta desperta Gjorg para que ele dê um sentido aos seus dias, mesmo que breves. O Kanun traz o montanhês à vida, faz com que se aproprie do seu destino. Sob esse aspecto, o Kanun se confunde com a própria realidade.


Por: Livya Martins -  piauiense, apaixonada por livros, filmes, música e séries de TV.

Revisão: Ceiça Souza

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