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Morreu na contramão atrapalhando o tráfego*

Agonizou no meio do passeio público

03/02/2016 20:14

Era um senhor de 60 anos. Há menos de um mês, foi seu aniversário e, um dia antes da data, ele teria a idade do meu pai. E tinha o nome do meu tio. O nome continua sendo o mesmo e a idade, também. Mas agora, no passado. Atravessou a rua com seu passo tímido, a caminho do trabalho, numa tarde quase de chuva. Agonizou no meio do passeio público, enquanto eu estava dentro de uma redação, agonizando de fome.

Pelo trânsito caótico, chegaria atrasado ao seu segundo emprego. Com uma família para sustentar, o salário de taxista não dava para sustentar todo mundo. Mas talvez ele nem se importasse muito com o atraso. Todos os dias fazia o mesmo percurso. Às vezes dispensava alguma corrida para ir deixar os filhos em casa. Um abraço e um almoço em família valiam muito.

O carro estava estacionado em uma rua qualquer do centro. Talvez ele tinha ido ali para tentar comprar livros usados e baratos. Com três filhos, não tinha dinheiro no mundo que pudesse pagar livros novos para eles levarem para a escola. A esposa pressionava: meu amor, as aulas das crianças já começaram, elas precisam de livros. No que ele revidava: agora com o inicio das escolas, pode ser que os livros ali na praça do fripisa estejam com um preço melhor, você sabe querida, nosso orçamento está apertado e eu não quero pegar mais corridas, essa profissão de taxista está muito perigosa, vi uma reportagem no último domingo falando sobre isso.

A reportagem foi escrita por mim, mas talvez ele, como fotolitógrafo, onde atuava diretamente na impressão do jornal, tivesse lido ela antes mesmo de todo mundo, e sentido uma falta de ar no coração, como eu senti, enquanto estava na rodoviária, na semana passada, ouvindo um taxista. Lembrei dessa entrevista que fiz porque enquanto perguntava e tentava escrever as sensações do senhor Edienaldo, gravei na minha memória uma coisa que ele me disse e que não deu para anotar no caderninho: “fui espancado anos atrás por bandidos, mas depois dei graças a deus, porque eu tive sorte de estar vivo, o que muitos amigos meus de profissão não tiveram”. O trabalhador do jornal deve ter se comovido, igual a mim.

Nesse dia, estava atrasado. Perto de se aposentar, a vida corria mais tranquila e ali, após procurar livros para suas três preciosidades em forma de amor, ele dançou e gargalhou pela rua como se ouvisse música. A impressão do jornal que esperasse!

Trinta anos fazendo o mesmo caminho, o mesmo trajeto, entrando pela mesma porta, fazendo os mesmos gestos. Talvez tenha sido esse senhorzinho, naquele meu primeiro período na universidade que explicou para mim e para minha turma, aquele processo da gráfica, antes da impressão do jornal. Talvez ele já tivesse me dado bom dia e, nesse tempo todo, evitado um erro grotesco da capa do jornal.

Mas hoje, ele se acabou no chão feito um pacote flácido, com as chaves do carro ainda na mão. Ele segurou as chaves do veiculo para não ser roubado por um adolescente. Segurou aquele molho de chaves, da mesma forma que seguraria as dores da família, o coração da esposa e seus sonhos. Ele teria sonhos? Deveria ter. E, por isso, deveria ser um homem de bem, que sorria ao final do dia. Todos sorriem, não é mesmo?

Era um senhor de 60 anos e eu aposto que contava os dias para se aposentar e ir morar em um sítio bem afastado da cidade. Igual meu pai! Eu nem cheguei a conhecer o senhorzinho, mas já sei que ele era parecido com meu pai. E, de alguma forma, ele também era importante para mim, para o meu trabalho. Sem ele, as histórias que escuto e conto nas notícias, não seriam impressas. O jornal foi rodado hoje, como todos os dias porque tinha que ir. Sim ou sim! Mas foi impresso com tinta molhada. Se você que estiver me lendo for assinante do jornal, não se assuste se seu exemplar chegar úmido em sua casa. É que a gente deixou cair uma lágrima, enquanto o senhorzinho de óculos flutuava para o céu como se fosse um pássaro.


“Amou daquela vez como se fosse a última. Beijou sua mulher como se fosse a última. E cada  filho seu como se fosse o único. E atravessou a rua com seu passo tímido... E flutuou no ar como se fosse um pássaro”


*texto com trechos da música Construção, do Chico Buarque.

Por: Maria Eli.
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